A revolução do gás de xisto nos EUA: passado e futuro

Nos últimos dez anos, os EUA se tornaram líderes na produção de gás de xisto. Graças a técnicas inovadoras de extração introduzidas pelo empresário texano George P. Mitchell, o gás natural preso em formações de xisto, cuja obtenção antes era difícil demais e muito cara, hoje proporciona uma oferta cada vez maior de energia ao país. A perfuração é feita horizontalmente no subsolo até alcançar as formações de xisto. Em seguida, os túneis escavados pela perfuração são inundados com água, areia e produtos químicos que rompem a rocha e forçam o gás a vazar — um processo conhecido como fraturamento hidráulico [fracking]. Com isso, as empresas americanas deflagraram uma revolução no segmento de gás de xisto. A produção americana desse gás passou de praticamente zero, em 2000, para um nível em que contribui com ¼ do gás natural dos EUA e que deverá chegar à metade do total de gás natural no país até 2030, de acordo com dados do Instituto de Políticas Públicas James A. Baker da Universidade Rice em Houston, no Texas.

Dono da segunda maior reserva do mundo (depois da China), de acordo com a Administração de Informações sobre Energia (EIA), os EUA, de repente, detêm uma nova e vasta fonte de energia que poderia ajudar o país a diminuir sua dependência do petróleo estrangeiro. “O ponto forte do gás de xisto é sua contribuição para a independência energética dos EUA”, diz Gary Survis, pesquisador do Projeto de Liderança Global em Meio Ambiente  (IGEL, na sigla em inglês) da Universidade da Pensilvânia/Escola Wharton. “Trata-se de uma mudança drástica de paradigma.”

Além disso, o gás natural, constituído sobretudo de metano, gera metade das emissões de carbono geradas pelo carvão. O fraturamento em si suscita preocupações ambientais — como, por exemplo, a contaminação dos lençóis aquíferos subterrâneos, caso os túneis não estejam alinhados corretamente e os produtos químicos utilizados para manter abertos os poros da rocha vazem. Excetuando-se, porém, o impacto ambiental da produção do gás de xisto, “o gás natural é o melhor combustível de hidrocarbonetos”, avalia Robert Giegengack, professor de ciência da terra e de meio ambiente da Universidade da Pensilvânia. “Ele produz menos dióxido de enxofre e outros contaminantes, é mais fácil de manusear e é produzido mais perto do mercado”, em lugares como a formação de xisto Marcellus nos estados de Nova York, Pensilvânia e estados vizinhos.

Contudo, apesar de todas as virtudes do gás de xisto, os produtores americanos estão descobrindo agora que nem tudo são boas notícias. A produção acelerada, aliada à desaceleração da economia, derrubou os preços do gás natural de cerca de US$ 7 a US$ 8 por milhão de pés cúbicos para menos de US$ 3 hoje. Com o petróleo a US$ 100 o barril, as atividades de perfuração de gás estão estancando, ao passo que as plataformas nos campos de petróleo estão aumentando. Em 2010, pela primeira vez em 16 anos, o número de plataformas de petróleo superou o número de plataformas de gás no território continental dos EUA, conforme dados do relatório da UBS Securities.

Hoje, os operadores estão se retirando dos campos mais maduros de gás de xisto, como o Barnett, no Texas, e o Haynesville, no Arkansas, na Louisiana e no Texas, e os estão trocando por campos mais novos com potencial de produção de gás e de petróleo — como o campo de Utica, em Ohio, e Bone Spring, no Texas e no Novo México, diz Drew Koecher, chefe de energia da KPMG no segmento de transações e de reestruturações. Com a diminuição dos preços, muitos perfuradores de gás de xisto atravessam uma fase financeira difícil. A Chesapeake Energy, de Oklahoma City, segunda maior empresa de gás de xisto depois da Exxon Mobil, vem levantando capital com a venda de ativos, ao mesmo tempo que enfrenta uma investigação da SEC (Comissão de Valores Mobiliários e de Câmbio) sobre supostos conflitos de interesse do CEO Aubrey McClendon, suspeito de ter usado sua participação pessoal nos poços da companhia como garantia para levantar um empréstimo, conforme noticiado na imprensa. 

Contudo, o recente boom do gás de xisto está longe de ter chegado ao fim, e o impacto da revolução americana no setor ainda se fará sentir, dizem os especialistas. Em primeiro lugar, os EUA têm ainda muitos outros recursos a extrair. “Resta ainda muito tempo pela frente antes de os EUA esgotarem suas reservas de gás de xisto”, observa Brandon Beard, diretor gerente da KPMG para transações e reestruturações de energia nos EUA. “Serão necessários de dez a 20 anos para que isso aconteça.” Além disso, à medida que cresce a demanda de gás, os preços se recuperarão e fortalecerão a indústria. “A fartura de gás é mais ou menos temporária”, avalia Noam Lior, engenheiro mecânico da Universidade da Pensilvânia e professor de mecânica aplicada e da graduação no Lauder Institute da Universidade da Pensilvânia/Escola Wharton. “Enquanto os preços do petróleo estiverem acima de US$ 100 o barril, aproximadamente, o gás continuará a ser muito competitivo.” É o que pensa também Jonathan Banks, assessor sênior de política climática da Clean Air Task Force, de Boston. “Não há cura melhor para preços baixos do que preços baixos”, diz. Estimulada pelos baixos preços, a demanda de usinas elétricas, fabricantes de produtos químicos, veículos movidos a gás natural e mercados estrangeiros devolverá a saúde da indústria de gás de xisto; os preços relativamente baixos da energia de gás natural ajudarão a sustentar a economia americana, preveem os especialistas. “É algo revolucionário”, observa A. J. Scamuffa, chefe de produtos químicos da PwC, na Filadélfia.

A curto prazo, o maior aumento na demanda de gás natural vem da geração de energia elétrica, diz Beard, da KPMG. Muitas usinas passaram do carvão para o gás natural mais barato, de tal modo que as emissões de carbono dos EUA caíram nos primeiros quatro meses do ano, e estão hoje em seu nível mais baixo em duas décadas, de acordo com a EIA. O carvão gera hoje apenas 34% da eletricidade consumida nos EUA, enquanto que, em 2005, esse percentual era de 50%, informou o EIA. A Tennessee Valley Authority (TVA) informou no ano passado o fim das operações de 18 geradores movidos a carvão em três usinas até 2020, num dos maiores eventos desse porte já anunciados. Com isso, resolve-se uma queixa suscitada pela Lei do Ar Limpo feita pela agência de Proteção ao Meio Ambiente. Planeja-se substituir esses geradores por outros movidos a gás natural e biomassa. Em agosto, a TVA inaugurou sua quinta e maior usina movida a gás natural, a Magnolia, de 986 megawatts nas imediações de Ashland, em Ohio.

Breve renascimento?

Enquanto isso, no decorrer dos próximos anos, os baixos preços do gás poderiam deflagrar o renascimento da produção americana, dizem os especialistas. A PwC prevê que a revolução do gás de xisto poderia acrescentar um milhão de empregos na área fabril dos EUA até 2025, além de reduzir as despesas com fabricação em US$ 11,6 bilhões ao ano nesse período. “Os fabricantes de produtos químicos que estavam no exterior estão voltando aos EUA” para tirar proveito dos baixos preços do gás natural aqui, diz Scamuffa, da PwC.

Atualmente, muitos fabricantes de produtos químicos estão deixando de usar o petróleo e passando a usar o gás natural na produção do propano, butano e outros ingredientes básicos em produtos como tintas e até semicondutores. Grandes empresas estão investindo mais de US$ 15 bilhões em capital para modernizar as instalações existentes e construir novas instalações na América do Norte devido à abundância de gás natural aqui, observa Garrett Gee, diretor de serviços de assessoria química da PwC na Filadélfia. De acordo com um relatório da PwC, trata-se de empresas como a Dow Chemical, Bayer e Westlake Chemical, entre outras. “No decorrer dos próximos três a quatro anos, com a construção da infraestrutura necessária na América do Norte, esperamos que o custo mais em conta da matéria-prima se traduza em custos mais baixos dos produtos usados no dia a dia e dos bens duráveis.”

Com o tempo, o gás natural mais barato pode transformar até mesmo o setor de transporte dos EUA, responsável por cerca de 30% das emissões de carbono do país. Há 14 milhões de veículos movidos a gás natural no mundo todo, dez vezes mais do que há dez anos, de acordo com um relatório de 22 de agosto do Conselho Nacional do Petróleo. Contudo, os EUA , onde circulam apenas 130.000 veículos movidos a gás, aparecem em oitavo lugar no mundo depois de países como o Paquistão, Argentina, Brasil, Índia e China. A maior parte dos veículos americanos movidos a gás são caminhões devoradores de energia, ônibus e caminhões de lixo. Com apenas 1.200 postos de gás natural em todo o país, ante cerca de 160.000 postos de gasolina, o carro da família movido a gás natural ainda é um sonho distante, avalia Richard Kolodziej, presidente da Associação dos Veículos Movidos a Gás Natural de Washington, D. C. “Para impulsionar o mercado popular de carros a gás, será preciso, ao que tudo indica, uma penetração de 10% nos postos de gasolina, ou 16.000 postos”, disse.

Uma das novas fontes mais controversas de demanda do gás de xisto são os mercados externos. Historicamente, os preços do gás nas diversas regiões do mundo “têm valores diferentes exclusivamente por causa de fatores tradicionais”, observa Lior, professor da Universidade da Pensilvânia, que está escrevendo um artigo sobre o assunto. Nos EUA, os preços são fixados pela oferta e pela procura, mas na Europa e na Ásia, eles são indexados ao preço do petróleo e a outros índices, disse.

Como os preços do gás na Ásia são de duas a três vezes mais elevados do que nos EUA, as exportações parecem o próximo passo lógico. Todavia, muitos especialistas acham que as exportações em larga escala estão fora de cogitação. Opõem-se a ela os que desejam manter o gás no mercado interno para que os EUA se tornem independentes no setor de energia e sua economia, mais forte, ressalta Koecher, da KPMG. Além disso, acrescenta Michael Levi, pesquisador sênior de energia e meio ambiente do Conselho de Relações Exteriores, “os EUA deverão se tornar um pequeno exportador, jamais um exportador de grande porte, devido ao custo de transporte do gás natural para os mercados externos”.

Muita gente hesita em pôr dinheiro na implantação de terminais de exportação de gás natural liquefeito (GNL), cujo desenvolvimento leva vários anos, porque teme que a China, Austrália e outros países desenvolvam uma produção própria de gás de xisto e derrubem o valor dos investimentos. Uma usina de liquefação leva tempo para captar o dinheiro e conseguir a licença de construção, diz Levi. “Quem entra num negócio desses precisa estar convencido de que ganhará dinheiro com exportações durante cinco ou mais anos depois que a usina estiver de pé.” Levi observa que somente algumas empresas parecem levar a sério o desejo de exportar, entre elas a Golden Pass Products, recente joint venture entre a Exxon Mobil e a Qatar Petroleum, que planeja transformar a usina do Texas em um terminal de GNL, e a Cheniere Energy, que está investindo num terminal de GNL em Sabine Pass, na Louisiana.

Questões ambientais

Embora a indústria de gás natural liquefeito possa dar um impulso à economia americana e à independência do país do petróleo externo, os defensores do meio ambiente estão preocupados com seu impacto ambiental. As queixas de contaminação dos lençóis aquíferos subterrâneos estão tomando agora o caminho dos tribunais, e grupos contrários à técnica do fraturamento temem que a atividade possa provocar terremotos. Com relação às emissões de gás, não há opinião formada a respeito, uma vez que o metano é um gás de efeito estufa quatro vezes mais nocivo do que o dióxido de carbono.

“A queima do gás natural é mais pura do que a do carbono, mas não o suficiente para que não haja impacto ambiental”, principalmente se a facilidade de acesso ao gás encorajar o aumento do consumo, diz David McCabe, cientista atmosférico da Clean Air Task Force. “A informação mais precisa que temos hoje é que o gás de xisto, abundante e barato, apressará o aquecimento.” Embora a EPA tenha aprovado procedimentos que limitam o vazamento do metano nos novos poços de gás de xisto a serem construídos a partir de 2015, os EUA não têm regulações que restrinjam o vazamento de metano em outras partes da cadeia de suprimentos. “Se não forem introduzidas regulações eficazes, poderemos ter sérios problemas de contaminação do ar e da água no futuro”, disse Lior, da Universidade da Pensilvânia.

Outra grande preocupação, dizem os especialistas, diz respeito ao impacto do gás de xisto sobre o nascente setor de energia alternativa. “A quantidade de carbono que o gás natural produz é muito melhor do que a produzida pelo carvão, mas não se compara à energia eólica ou solar de forma alguma”, observa Survis, pesquisador da IGEL. “O gás de xisto é tão-somente uma tecnologia intermediária, e não uma tecnologia sustentável. Não conduzirá à independência de energia a longo prazo, como no caso da energia solar e eólica.” Infelizmente, o boom do gás de xisto vem numa hora em que a energia verde ainda se esforça para baixar custos para que possa competir com os combustíveis fósseis. “Com a queda dos preços do gás, o gás de xisto poderá desbancar a energia alternativa e tolher sua expansão”, principalmente agora que os EUA estão cortando os subsídios desse setor, diz Survis.

Por enquanto, a revolução do gás de xisto nos EUA continua a ganhar terreno e já conquista uma posição mais sustentável, reformulando o cenário da energia e a economia dos EUA por tabela.

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